132 anos pós-abolição: a luta contra o racismo no mercado de trabalho

Especialistas falam sobre os desafios da sociedade e o racismo estrutural

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Publicado em:13/05/2020 às 09:28
Atualizado em:13/05/2020 às 09:28

Passados 132 anos da abolição da escravatura no Brasil, os negros ainda enfrentam diversos preconceitos que vão muito além da cor da pele. Envolvem crenças, religião, expressões e até mesmo trajes e culinária. Como consequência, a disparidade e a discriminação nos ambientes de trabalho, por exemplo, trazem à memória um passado que deveria ter ficado em 1888, ou até mesmo nunca existido. 

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, o rendimento médio mensal da população branca era de R$2.796, enquanto que para a população negra era de R$1.608. Ou seja, o rendimento para a população branca, hoje, é 73% superior ao da população negra. 

Segundo Stephane Ramos da Costa, especialista em movimentos sociais negros no Brasil do pós-abolição, esses dados demonstram as disparidades encontradas, atualmente, no mercado de trabalho. 

Outro fator apontado pela especialista é a questão educacional, elemento importante para a compreensão de como o preconceito racial se materializa, já que a taxa de escolaridade acumulada ao longo das gerações entre indivíduos pretos e pardos ainda é baixa. 

Stephane, que também é mestranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dá dois exemplos que comprovam a afirmação e mostram que menos da metade da população negra com 25 anos ou mais possui ensino médio completo: 

  • A taxa de analfabetismo entre a população negra que, ainda hoje, representa 9,1%; e
  • A proporção de indivíduos negros com 25 anos ou mais que possuem ensino médio ainda é de apenas 45%. 

 

"Trata-se de um círculo vicioso em que o baixo nível educacional é responsável por uma posição inferior nos grupos sociais, e esta posição social, em contrapartida, é causada pelo baixo nível educacional de quem pertence a ela." 

Para Cleber Santos Vieira, diretor de relações institucionais da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), no mundo do trabalho, o julgamento negativo sobre a capacidade da população negra se manifesta sob três formas: 

  • Discriminação ocupacional;
  • salarial; e 
  • pela imagem. 

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"A situação das trabalhadoras domésticas é a face mais explícita e radical desse processo. Em sua maioria negras, somente, recentemente, conseguiram os direitos trabalhistas. Infelizmente, no mesmo momento em que a CLT e o registro em carteira foram abalados", diz Cleber, que também é coordenador nacional do Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos AfroBrasileiros, Indígenas e Grupos Correlatos (CONNEABs).

 

homens negros
Rendimento mensal da população branca é 73% superior ao da população negra
(Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil) 

 

Período pós-abolicionista não preparou o negro para a inserção na sociedade

Apesar da implementação da Lei Áurea, Stephane destaca que, no período pós-abolição, não houve qualquer tipo de subsídio para a inserção social da população recém liberta. Desta forma, negros e negras continuaram, em sua maioria, ocupando posições marginalizadas nos mais diversos setores.

Na sociedade atual, o artigo 149 do Código Penal brasileiro define como trabalho análogo à escravidão quando indivíduos são submetidos a trabalhos forçados ou jornadas exaustivas. No entanto, ainda podemos encontrar instituições que sujeitam seus funcionários a atividades laborativas sob condições degradantes e desumanas. 

Só em 2019, a Secretaria de Inspeção do Trabalho denunciou mais de 180 empresas, o que, segundo a especialista, confirma a continuidade de dinâmicas sociais do período escravista na contemporaneidade. Sendo assim, é de extrema importância a ampliação na implementação de políticas públicas que possibilitem melhores condições de trabalho ainda hoje.

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Para Cleber, a atual crise econômica e política que vivemos, potencializada pela pandemia da Covid-19, certamente acentuarão os casos de trabalho análogo. Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho mostram que, de 2016 a 2018, 82% das pessoas resgatadas em situação de trabalho análogo ao de escravo eram negras. 

"A luta pela eliminação do trabalho escravo contemporâneo também é a luta pelo resgate à dignidade humana da população negra de nosso país. O crime de 'lesa humanidade' que escravizou grande parcela de nosso povo ainda reverbera nos dias de hoje. A máxima de que toda lesão de direito deve ser reparada e compensada ainda não foi aplicada na medida devida às negras e negros brasileiros", afirma.

Como combater o racismo estrutural? 

Stephane Ramos da Costa conta que o conceito de racismo estrutural foi fundamentado em uma prática de sujeitos e que precisa ser combatido por todos nós. Para a especialista, antes de mais nada, é essencial compreender que o racismo estrutural só existe porque indivíduos o perpetuam. 

Para a Procuradora do Trabalho e Coordenadora da Coordigualdade do Ministério Público do Trabalho em São Paulo (MPT-SP), Valdirene Assis, o racismo estrutural se combate com políticas públicas que revolucionem as estruturas de desigualdade racial e social no Brasil. 

Valdirene ressalta que é preciso também defender e ampliar as políticas afirmativas, como as cotas raciais na educação e nos concursos públicos. E, além disso, ainda reconhecer que 132 anos após a abolição, só podemos falar de racismo estrutural e políticas afirmativas pela resistência e solidariedade entre negros e negras:

"Mesmo em diferentes cenários históricos de extrema exclusão e marginalização, ensinaram à sociedade brasileira a importância de se combater o racismo para a construção efetiva de uma sociedade democrática. As ações afirmativas são essenciais e devem ser realizadas pelo poder público e pela iniciativa privada."

Para a procuradora, a política eugenista e o mito da democracia racial foram as formas encontradas pelo Estado e pelas elites para sufocar a discussão sobre o racismo e seus malefícios. 

Por isso, é importante assumir o racismo estruturante de nossas relações sociais, pensar a branquitude e seus privilégios sociais como tema crucial para superar os desafios do racismo e seus impactos no mercado de trabalho.

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Ela propõe à sociedade revisitar o pacto social e compreender que ele só é legítimo quando estabelecido em proveito de todas e todos. 

"No pacto social brasileiro, negros e negras votam, mas não são votados, cumprem a lei mas não participam de sua feitura ou execução, contribuem para a geração de riquezas do país, mas, muitos vivem em situação de desamparo social. Logo, nosso pacto social deve ser revisto e isso se dá por uma ação consciente de busca da justiça social, em favor de todas os cidadãos brasileiros", questiona.

Dívida histórica com nossos antepassados de um passado nem tão distante 

Para Alexandre Marques, professor de História na rede municipal em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, o termo "escravo" acabou sendo naturalizado e, segundo ele, nada que é humano é natural: 

"Já tem algum tempo que trabalhamos com a ideia de 'negros escravizados' e não 'escravos'. Porque, antes de ser escravizado, tem a sua concepção humana de negro. Ele não nasce como escravo, nasce como negro. Uma pessoa livre que, por algum motivo, é escravizada e explorada."

Levando para um conceito mais histórico, o professor que também é coordenador de pré-vestibular e de História em outras instituições de ensino, comenta que uma sociedade que viveu mais de 300 anos explorando a mão de obra do negro e cultural, ideológica e economicamente, não sai ilesa. 

Sendo assim, a sociedade não percebe o quanto se torna dependente das próprias relações escravistas que foram estabelecidas nesses mais de 300 anos de escravidão, passando a reproduzir imagens negativas para simbolizar situações cotidianas. 

Alexandre cita dois exemplos comuns em nossa sociedade que figuram essa relação escravista: "Primeiro, de quem trabalha, ainda hoje, é escravo - Hoje, eu trabalhei como um escravo -, a outra é que o trabalho é uma coisa negativa - só aqueles incapazes fazem os trabalhos - relacionando esses afazeres aos serviços subalternos que exigem menos qualificação intelectual e profissional, com menores remunerações.

"Isso vem do período da exploração da mão de obra desse negros" cita, Alexandre, ao ressaltar que desde o início da República há uma preocupação de manter o negro alijado do processo político, já que os negros escravizados não tinham acesso à educação, à saúde e aos serviços fornecidos pelo Estado.

Novos tempos, velhas atitudes 

Não é de hoje que a desigualdade educacional e a dificuldade de acesso à cidadania no país afeta e limita o crescimento profissional e intelectual dos menos favorecidos. Alexandre lembra que, no final do século 18 e ao longo do século 19, tínhamos os "escravos de ganho", que trabalhavam no setor urbano e no final do dia davam todo o seu dinheiro na mão do seu senhor. 

Entre os serviços executados por esses escravos urbanos estavam: 

  • os engraxates, que engraxavam sapatos no centro da cidade;
  • as negras quituteiras, que saíam com seus tabuleiros para vender comida;
  • os chamados "burros sem rabo", que carregavam pequenas carroças transportando compras e águas, além de fazer limpeza nas casas;
  • os negros que faziam a segurança das casas comerciais, das grandes residências e carregavam as compras dos seus senhores; 
  • as negras de leite, que amamentavam o filho de outras pessoas em troca de dinheiro; e 
  • as negras arrumadeiras - amas -, que, em troca de comida, proteção e residência, muitas delas, escravizadas ou não, se submetiam aos trabalhos e aos favores sexuais dentro das casas. 

 

"Se olharmos para a sociedade de hoje, essas práticas, principalmente nos centros urbanos, continuam sendo executadas. Com a etnia bastante definida, mas teoricamente livres. São trabalhos em que você vê a cor da pele das pessoas, vê a origem das pessoas e são, em sua maior parte, negros com baixa qualificação profissional, com baixo acúmulo educacional, baixíssimos salários e péssimas condições de vida. Sem possibilidade, esses negros não conseguem ascender aos melhores postos no mercado de trabalho", observa.

Alexandre conta que, quando foi assinada em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea só tinha dois artigos: no primeiro, acaba a escravidão; no segundo, a lei só teria validade de 100 anos. 

É importante ressaltar que, na época, o único lugar do país que ainda mantinha os negros escravizados era o Rio de Janeiro. Quase todo Brasil já tinha acabado com a escravidão. Além disso, essa validade da Lei dava margem para que talvez em 1988, quando completasse 100 anos, os negros voltassem a ser escravos.

"Coincidentemente, em 1988, estava sendo discutida a nova constituição brasileira, a primeira pós-ditadura, que é a que está em vigor. Alguns preconceituosos disseram que os negros voltariam para o cativeiro, para a escravidão. Em reposta, os negros se organizaram, lutaram pela aprovação de leis na Constituição. Dessa forma, a Constituição de 1988 estabelece que o racismo é um dos poucos crimes com punição inafiançável no Brasil."

Para finalizar, o educador ressalta que a lei é importante no combate ao racismo seja qual for a esfera. No entanto, só a lei não garante uma mudança. É preciso investir em educação:

"Tem que ter um mudança também nos aspectos culturais, seja no fazer cultural, valorizando mais as tradições religiosas, gastronômicas, as danças, os cânticos afrobrasileiros, a forma de vestir, valorizando as expressões culturais e os símbolos culturais dos negros. Outra forma é divulgando bastante material sobre isso, seja audiovisual, seja escrito para que uma maior quantidade de pessoas tenha acesso. E que o poder público, seja ele municipal, estadual ou federal se sensibilize que o racismo é existente e consistente, e que precisa ser combatido.

Por Cinthia Guedes - cinthia.guedes@folhadirigida.com.br

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