Em conversa com a Folha+, o advogado Humberto Adami explicou a importância das cotas raciais e esclareceu algumas dúvidas sobre o tema.
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Publicado em:18/11/2020 às 16:30
Atualizado em:18/11/2020 às 16:30
As ações afirmativas são medidas temporárias que visam eliminar desigualdades historicamente acumuladas. Um exemplo popular desse tipo de ação são as cotas - reservas de vagas para determinados segmentos minoritários da população, como negros, indígenas e pessoas com deficiência.
Em 2003, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi a primeira instituição pública de ensino a adotar um sistema de ações afirmativas. Mas, apenas em 2012, que a Lei nº 12.711, que regulamenta o sistema de cotas em universidades e institutos federais, foi sancionada.
Essa lei determina que sejam reservadas 50% das vagas no ensino superior público para estudantes que vieram de escola públicas. Dentro dessa reserva, metade precisa ser destinada para quem tem renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita.
Nesses casos, as vagas destinadas para negros, indígenas e pessoas com deficiência são definidas de forma proporcional. Ou seja, o número de vagas depende da proporção desses respectivos grupos em cada estado.
No serviço público, a Lei nº 12.990, de 2014, reserva para negros e pardos 20% das vagas em concursos públicos. Inclusive, em 2017, a constitucionalidade de lei foi reconhecida por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Após essas leis serem sancionadas, o debate sobre cotas raciais começou a ser intensificado. É muito comum ver alguém dizendo ser contra cotas para negros, utilizando argumentos como "meritocracia", "somos todos iguais" ou até mesmo "racismo reverso". Falácias que comprometem toda uma estrutura social, inclusive, o acesso de negros ao mercado de trabalho e às oportunidades qualificadas.
A verdade é que existe muita desinformação acerca das cotas raciais. Com a proximidade do Dia da Consciência Negra, para jogar luz ao assunto, Folha+ conversou com Humberto Adami, advogado e presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra do Conselho Federal da OAB.
Um dos principais argumentos de quem se opõe a esse tipo de ação afirmativa é dizer que "cotas deveriam ser apenas para pobres, independente da cor". Antes de entrar nessa discussão, é preciso separar desigualdade social de racismo.
A desigualdade social está ligada, exclusivamente, a questões econômicas. É o que distancia as classes mais ricas das mais pobres. Já o racismo está relacionado à raça e envolve situações que vão além do poder financeiro.
Para Humberto, esse pensamento de que cotas raciais não são necessárias revela que a pessoa "não consegue entender o ambiente de completa desigualdade que é fruto dos 300 anos de escravidão negra no país e que deixaram muitas marcas coletivas na sociedade".
O especialista explica que essas marcas acabam refletindo na vida de pessoas pretas e pardas, que somadas compõe o grupo de negros (maioria da população). Segundo ele, o racismo institucional ou estrutural pode ser visto "por todos os lados que você olha na sociedade brasileira".
"Eles (os negros) são a maioria da população que não vê refletida no seu quantitativo a importância da sua existência. E isso vai gerando outro tipo de repercussão, que são preconceitos e formas absurdamente intolerantes, racistas e criminosas, em relação à religião, ocupação de vagas de trabalho e ao próprio direito de ir e vir", relata.
O advogado chama atenção para outro ponto em que o racismo se mostra presente: a quantidade de investimento público. Ele afirma que em áreas geográficas ocupadas por brasileiros pretos e pardos é investido menos dinheiro do que naquelas ocupadas por brancos.
"O nome disso é racismo tributário. Você tem menos investimento em saúde, segurança, educação, moradia", explica. E, segundo Humberto, isso vai além da questões sociais.
"Quando você afasta todas as variáveis de questão social, como ascensão de pessoas pretas ou pardas pelos seus méritos - com ação afirmativa ou não -, ainda resta lá um preconceito, um olhar, uma diminuição que só se explica pela questão racial. Há racismo nessas situações", afirma.
As cotas ferem o princípio de igualdade previsto na Constituição?
Outro argumento utilizado por quem é contra as cotas raciais é o princípio da isonomia ou igualdade, previsto em Constituição, que diz que todos são iguais sem distinção de qualquer natureza.
Em 2009, o Democratas (DEM) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186 contra as cotas raciais da Universidade de Brasília (UnB). O partido solicitou a suspensão liminar da ação afirmativa.
Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou as cotas constitucionais, julgando improcedente a ação ajuizada pelo DEM. Em 2017, o Supremo julgou a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 41 e reconheceu, também com unanimidade, a validade da Lei de Cotas.
Humberto frisa que é evidente como a política de cotas se enquadra no princípio constitucional da igualdade de "tratar os desiguais desigualmente". Segundo ele, apenas a "igualdade forma" resulta nas exclusões que estão presentes no sistema brasileiro.
"Na Universidade de Brasília, onde eu estudei, havia 2% de estudantes negros, ou seja, para 98% não negros havia uma normalidade que não se enxerga na totalidade da população", exemplifica.
Ele complementa dizendo que, para a maioria dos brancos, era absolutamente normal ocupar praticamente todas as vagas da universidade, mesmo representando proporcionalmente uma parcela menor da população brasileira.
Cotas raciais favorecem negros e discriminam brancos pobres?
Para Humberto, o branco pobre não era lembrado, assim como o negro. Porém, a partir das cotas raciais, ele passa a ser lembrado e também tem direito à cota social. No entanto, é preciso ponderar que são ações inclusivas, mas com focos diferentes, pois a questão racial vai além do financeiro.
Brancos pobres têm direito à cota social
(Foto: Freepik)
O combate ao racismo para além das ações afirmativas
Segundo Humberto, para os negros, as ações afirmativas buscam reparar resquícios da escravidão. Após três séculos de trabalho forçado, a dimensão social e política dessa época se estende até os dias de hoje.
O advogado chama atenção para as denúncias de racismo que estão acontecendo no mundo inteiro e que se intensificaram após o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos. "Não é possível mais aceitar esses insultos que se naturalizaram no Brasil", pontua.
Apesar dos vários casos de racismo explícitos, ele conta que o Poder Judiciário e polícia "funcionam com muita leniência para esse tema", sem incentivos que buscam coibir esse crime considerado inafiançável.
"Você vê que tem poucos racistas presos do país. Eu mesmo não estou sabendo de nenhum caso, mas todos os dias você vê denúncia de racismo sendo formulada no país inteiro", conta.
Para o especialista, há uma certa "má vontade" nas condenações de racismo no país. "Você tem muito poucos condenados e era preciso que isso modificasse. O assunto caminha agora para a discussão da reparação da escravidão propriamente dita", explica.
A cota racial é uma medida emergencial que visa reparar uma desigualdade histórica, mas o combate ao racismo vai além. Enquanto negros tiverem seus direitos negados por conta da cor da pele, o dia 20 de novembro se mostra cada vez mais necessário.
Como dito pela filósofa e escritora Djamila Ribeiro, "não dá para falar em consciência humana enquanto pessoas negras não tiverem direitos iguais e sequer forem tratadas como humanas".