Delegados falam das lutas LGBTQI+ nas carreiras da Segurança Pública

No Dia Internacional da Luta contra a Homofobia, Transfobia e Biofobia, delegados abordam os desafios dessas pessoas na carreira pública.

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Publicado em:17/05/2020 às 04:00
Atualizado em:17/05/2020 às 04:00

Dentre todas as atividades que compõem as funções da polícia, talvez a mais importante seja a proteção à vida e ela se torna ainda mais essencial para grupos mais vulneráveis da sociedade. 

No Dia Internacional da Luta contra a Homofobia, Transfobia e Biofobia, FOLHA DIRIGIDA conversou com dois policiais civis que lutam pelos direitos dos LGBTQI+.

Além de falar um pouco sobre os índices de crimes contra essa população, os profissionais citaram os desafios de agentes de segurança pública LGBTQI+ nas instituições. Confira!

O delegado Mário Leony está há 19 anos na Polícia Civil de Sergipe. A maior parte desse tempo atuou no departamento de combate a homicídios e proteção de pessoas.

No começo de sua atuação como ativista da causa LGBTQI+, Leony identificou que havia uma subnotificação muito alta de episódios de violência que acontecem contra essa população.[tag_teads]

Na época, por volta de 2006, 74% das ocorrências sequer tinham sido materializadas em um Boletim de Ocorrência (BO). Isso englobava desde casos mais leve, como agressões verbais, a crimes de violência sexual.

"Essa era a comprovação de que a Polícia Civil não estava a par da realidade enfrentada pela comunidade LGBTQI+", relembrou.

Por conta desse trabalho na academia de polícia, surgiu a oportunidade do delegado participar de seminários que abordassem o tema. O primeiro aconteceu em 2007 e foi promovido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. O tema era: Segurança Pública para LGBTs.

Participaram do encontro oficiais e delegados de polícia de todo o país, além de lideranças do movimento LGBTQI+.

"Aquilo mudou minha cabeça, porque eu tava ali como delegado para falar sobre minhas pesquisas a respeito do tema em Aracaju, ao mesmo tempo que eu também era LGBT. E aí eu passei a questionar qual era meu papel ali e na Segurança Pública."

Delegado  Mario Leony (foto: Arquivo Pessoal)
"Que heterossexualidade frágil é essa incapaz de conviver com a
diversidade?", Mário Leony


Foi nesse momento que surgiu o comprometimento de voltar para a polícia e empenhar essa bandeira, sobre a diversidade, dentro e fora da polícia civil. Ao voltar, o delegado se aliou ao projeto de implantação do centro de referência.

A instituição presta o serviço de atendimento psicossocial às vítimas de violência contra LGBTQI+, dentro do âmbito da Segurança Pública. "Ai começou minha militância em Direitos Humanos mais focada na questão LGBTQI+."

Agentes de segurança pública LGBTQI+ precisam lidar com assédio moral

Leony também participou de um grupo de trabalho convocado pelo então secretário de Segurança, Ricardo Balestreri, que reunia técnicos das diversas forças policiais do Brasil, junto com representantes civis da sociedade organizada LGBTQI+, para debater formulação de políticas voltadas a esses cidadãos.

O grupo discutia uma série de questões básicas, como o modo correto de fazer a abordagem policial dessas pessoas e sobre o uso do nome social.

Um segundo seminário foi realizado e a partir dele surgiu o primeiro encontro de trabalhadores da Segurança Pública LGBTQI+, policiais, bombeiros, guardas municipais, entre outros. De lá surgiu a Renosp LGBTI+, associação de agentes de Segurança Pública LGBTI+ de todo o Brasil, na qual Leony atua como diretor.

A associação foi criada para trabalhar no enfrentamento da LGBTIfobia no país. Além disso, atua na garantia da liberdade de orientação sexual e de identidade de gênero no âmbito da segurança pública.

"Eu sempre brinco que Renosp parece nome de remédio e ela é um antídoto que agente busca para fazer o enfrentamento da LGBTfobia institucional."

Os desafios enfrentados por agentes de Segurança Pública assumidamente LGBTQI+ são inúmeros, principalmente entre os militares. Há casos de:

  • Assédio moral;
  • Oposição a promoções em carreiras policiais;
  • Remoções arbitrárias;
  • Processos administrativos disciplinares;
  • Entre outros.

Para Leony, muitos paradigmas em torno da homossexualidade e transsexualidades ainda precisam ser quebrados. O delegado ressaltou que apesar de considerar difícil avançar em políticas públicas pró LGBTQI+ com o atual governo federal, se mantém otimista em relação aos futuros avanços para a causa.

"A nossa consciência e a nossa mobilização tem aumentado. As conquistas que tivemos por conta da jurisprudência do nosso país também ajudou muito. Tivemos o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares em 2011 por parte do STF, por exemplo."

Desafio para população trans é ainda maior

Outra conquista é o reconhecimento dos corpos trans e a possibilidades dessas pessoas retificarem seu nome e sexo. Somente em 2018 a transexualidade deixou de ser classificada como distúrbio mental pela Organização Mundial de Saúde (OMS). "Os corpos trans sempre foram muito regulados, tanto pela ciência médica, quanto pelo Direito."

Um estudo realizado entre os anos de 2008 e 2016 pela ONG europeia Trangender Europe, aponta que o Brasil é o país que mais mata pessoa trans no mundo.

"Nossos investigadores precisam perder o pudor de investigar a motivação transfóbica, até porque precisamos de uma lista com dados mais precisos para que possamos formular políticas públicas. Senão, vamos sempre passear no escuro."

Para isso é preciso investir em algumas mudanças, inclusive no sistema de registro de BOs. É preciso que esses sistemas contem, por exemplo, com campos destinados à inclusão do nome social e a motivação do crime homofóbica ou transfóbica, como já ocorre em alguns estados.

Outra questão que ainda precisa ser discutida é a falta de políticas públicas que visem a melhora da qualidade de vida da população LGBTQI+. O delegado apontou a falta de conscientização a respeito da causa e de campanhas voltadas para a questão LGBT.

Além disso, ressaltou que o grupo até hoje não tem acesso a uma legislação que faça com que os governos realmente se comprometam em avançar na formulação dessas políticas.

"O governo federal as vezes vem com aquela desculpa de que não pode interferir nos estados. Mas sabemos que nesse nosso país federativo existe por parte dos estados e municípios interesse no investimento que por ventura o governo federal venha a fazer. Eu acho que nesse momento do repasse a União precisa destacar onde precisa ser feito esse investimento", opinou.

Delegados defendem uma polícia mais diversa

Legalmente, a homossexualidade não é criminalizada no Brasil, ao contrário do que acontece em mais de 70 países atualmente. No entanto, historicamente a opinião pública cobra dos agentes de segurança pública a repressão ao público LGBTQI+.

Diante disso, é comum ainda ver casos em que os próprios profissionais pratiquem violências contra esse grupo ou aja por omissão, ou seja, tratar com descaso os episódios em que LGBTs são vítimas.

Internamente, os agentes assumidamente LGBTQI+ também sofrem com esse preconceito. "Os governantes precisam entender que quanto mais diversa for a corporação, mais representativa ela vai ser dentro da sociedade e mais legitimada ela estará."

Anderson Cavichioli, delegado da Polícia Civil do Distrito Federal e presidente da Renosp, concorda com essa colocação. Segundo ele, os ambientes dentro das corporações ainda são muito homotransfóbicos.

Os agentes LGBTQI+ sofrem com piadas e perseguições. Outra prática comum é designar essas pessoas para trabalhos mais exaustivos ou promover afastamentos. Como exemplo, Cavichioli citou o caso de uma travesti que atua na Marinha e que assim que iniciou o processo de transvestilidade foi aposentada por invalidez.

"Como se a transvesilidade fosse incompatível com o trabalho a ser desenvolvido na Marinha."

O delegado ressaltou que as situações variam de acordo com o estado. No Distrito Federal, por exemplo, é mais tranquilo.

"Aqui a Polícia Civil tem um protocolo sobre o atendimento da população LGBTQI+, tem uma delegacia especializada em crimes de intolerância. Ou seja, tem uma preocupação da polícia daqui em se estruturar para o enfrentamento dessas violências reconhecidamente específicas dessa população, que precisam de enfrentamento também específico", explica.

Anderson Cavichioli
"O treinamento das forças de segurança para acolher as especificidades das
demandas da população LGBTQI+ é um desafio", Anderson Cavichioli
​​​​​(Foto: Arquivo Pessoal)

População LGBTQI+ ainda não confia na polícia

Cavichioli contou ainda que muitas pessoas LGBTQI+ não confiam no trabalho da polícia e, consequentemente, não buscam ajuda, porque não se sentem representadas. Muitxs temem sofrer uma violência maior nas instituições de segurança Pública que nas ruas.

Na Renosp, já foi identificado o caso de um rapaz em São Paulo que foi registrar o roubo de um celular e por ser gay saiu agredido pelo policial que fez seu atendimento. O delegado revelou que em 2018 apenas 6% das pessoas LGBTQI+ que sofreram violência registraram os casos.

A razão para o baixo índice é a falta de confiança nas delegacias. Ainda são poucos os estados que contam com iniciativas específicas para o público LGBTQI+. Entre eles, estão São Paulo, Paraíba, Rio de Janeiro, além do Distrito Federal.

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A Renosp, dentre outras frentes de atuação, trabalha em contato com os órgãos de Segurança Pública orientando estes treinemos policiais para esses atendimentos. "Isso também é questão de educação e treinamento."

Anderson Cavichioli ainda aconselhou as pessoas LGBTQI+ que sonham em ingressar na carreira pública e se sentem inseguras com as possíveis repressões que possam sofrer: 

"A pessoa LGBTQI+ pode e deve acessar qualquer espaço público, e a polícia é um espaço público acessível por concurso. Sua presença [das pessoas LGBTQI+] nas carreiras de segurança moldam como esses espaços vão se comportar. Não temam, prestem seus concursos e juntem-se a nós."

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