Como é a inclusão de pessoas LGBTQI+ no ambiente de trabalho?

Pessoas LGBTQI+ relatam suas experiências no mercado de trabalho

Autor:
Publicado em:28/06/2020 às 07:00
Atualizado em:28/06/2020 às 07:00

Neste dia 28 de junho completa-se 51 anos desde a Rebelião de Stonewall, que representa um marco mundial para a luta dos direitos LGBTQI+. Ao longo desse período, algumas conquistas foram alcançadas por essa comunidade no Brasil e no mundo. Entre elas:

  • Determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) que caracteriza a discriminação por orientação sexual um crime;
  • Reconhecimento, também pelo STF, da união homoafetiva como uma entidade familiar;
  • Regulamentação da cirurgia de redesignação sexual, em 1997;
  • Reconhecimento do Nome Social;
  • Descaracterização da transexualidade como um distúrbio mental, em 2018;
  • E outras.

No entanto, quando se olha para o mercado de trabalho, ainda há muito a ser feito. A inclusão dentro das empresas brasileiras, independentemente do segmento, é um grande desafio. 

O primeiro deles é entender, justamente, que diversidade e inclusão não são sinônimos. A diversidade está relacionada ao percentual de diferentes pessoas atuando em uma mesma empresa. Ou seja, negros, mulheres, pessoas LGBTQI+, pessoas com deficiências e funcionários de diferentes idades e crenças.

Já a inclusão refere-se às práticas adotadas para promover um tratamento igualitário a toda essa diversidade que existe no ambiente de trabalho. Basicamente, o termo está relacionado às ações promovidas para que todos os funcionários possam ter direito às mesmas oportunidades de desenvolvimento e crescimento na carreira.

FOLHA DIRIGIDA conversou com integrantes da comunidade LGBTQI+ para entender os desafios que essas pessoas enfrentam em seus ambientes de trabalho. Os entrevistadxs compartilharam suas experiências e percepções sobre a cultura adotada nas empresas quando o assunto é diversidade e inclusão. Confira!

 Empregabilidade trans ainda é um desafio para o mercado de trabalho

LGBTQI+
Empresas ainda precisam trabalhar a pauta da inclusão nos ambientes de
trabalho (Foto: Divulgação)

 

Preconceito muitas vezes está atrelado à desinformação

A boa notícia é que em algumas empresas a pauta da inclusão já é trabalhada no papel e na prática. F.F. (entrevistado optou por não se identificar) atua na área de Recursos Humanos e percebeu nos últimos cinco anos um avanço na questão da diversidade das empresas. No entanto, o discurso da inclusão deve vir sempre acompanhado de ações.

Homem cis gay, F.F. passou por três empresas do setor com diferentes posicionamentos em relação ao assunto. Na primeira delas, uma multinacional francesa, havia um programa de diversidade e inclusão, que era executado de maneira eficiente na prática. A empresa oferecia, inclusive, um canal para que o público LGBTQI+ pudesse procurá-los para contar suas histórias e discutir qualquer coisa que estivesse incomodando. 

Em uma outra empresa de grande porte, mas desta vez nacional, as políticas não existiam no papel, mas os próprios líderes e diretores demonstravam na prática como tornar o ambiente inclusivo. Já na empresa que trabalha atualmente, F.F. passou por uma experiência bem diferente e desagradável. Os colegas ao conhecê-lo agiram de forma desrespeitosa, fazendo piadas sobre sua orientação sexual. 

Para F.F., muitas vezes, o que falta é o respeito. "Não digo nem aceitação, porque ninguém tem que aceitar ninguém, mas você tem que respeitar."

Outro fator que contribui para que, ainda hoje, pessoas LGBTQI+ passem por constrangimentos no ambiente laboral é a desinformação. Muitas vezes, os assuntos envolvendo esse público são considerados um tabu e acabam não sendo discutidos da maneira que deveriam.

"Costumamos nos aproximar de quem tem as mesmas características sociais e o diferente deixamos distante. Isso acaba sendo ruim, porque quando temos medo do diferente, não nos informamos sobre ele. Então a falta da informação gera um monte de julgamentos e medos."

Para o futuro, F.F. acredita que a perspectiva da maioria das empresas, mesmo aquelas que não adotam uma cultura inclusiva hoje em dia, deve mudar. Já existem estudos, por exemplo, que mostram que um ambiente mais diverso e mais inclusivo, onde as pessoas consigam ser elas mesmas, a produtividade é muito maior. E este será um grande incentivo para as organizações.

"É necessário que as empresas respeitem as pessoas do jeito que elas são", F.F.

Empresas brasileiras ainda são fechadas à inclusão

Na maioria dos casos, a inclusão ainda não é trabalhada de forma eficaz nas empresas. Segundo Carla Ferreira, mulher cis lésbica, ainda existe o preconceito velado.

Carla Ferreira
Carla Ferreira (Foto: Arquivo Pessoal)

"Ninguém chega e diz: sou heterossexual. Mas, nós precisamos pensar no preparatório, no momento ideal e como será o dia depois da grande revelação, da "saída do armário" no ambiente corporativo."

Para Carla, hoje, o ambiente é mais favorável do que há 20 anos, por exemplo. No entanto, as empresas deveriam demonstrar mais que se importam com o tema, para promover ambientes mais inclusivos no trabalho. 

A necessidade indicada por Carla se reflete nos dados obtidos em pesquisas sobre a empregabilidade de pessoas LGBTQI+. De acordo com uma pesquisa feita pelo site de recrutamento Elancers, no ano passado, 20% das empresas que atuam no Brasil não contratam lésbicas, bissexuais, gays, travestis e transexuais em razão da orientação sexual e identidade de gênero

Desse percentual, 11% só contratariam se a pessoa não ocupasse cargos de decisão ou níveis superiores. O levantamento "Demitindo Preconceitos", realizado pela Santo Caos aponta que 61% das pessoas LGBTQI+ empregadas escolhem esconder de colegas de trabalho a própria sexualidade.

Atualmente, Carla trabalha como gerente de Marketing em uma empresa de tecnologia. Ela contou que nunca passou ou presenciou alguma situação de preconceito por conta de sua orientação sexual. 

"Na empresa onde trabalho não existe diferença entre os funcionários. Sinto-me à vontade entre os pares de todas as áreas e não percebo discriminação. Sinto-me acolhida por todos que convivo", relatou.

Uma dificuldade foi logo após a adoção de sua filha: "A empresa ficou sem saber como proceder com a licença maternidade, pois nunca havia acontecido, por se tratar de uma multinacional com a maior força de trabalho masculina."

+ Como ser uma empresa mais inclusiva para o público LGBTQI+?

Algumas empresas ainda não prestam apoio aos funcionários LGBTQI+

Entretanto, a experiência dela não é reflexo do que acontece com muitos integrantes da comunidade LGBTQI+. Ricardo Figueiredo, homem cis gay, por exemplo, precisou encarar uma situação incômoda em seu último trabalho: as ofensas  por conta de sua orientação sexual. 

Ricardo trabalhava em uma funerária, que presta serviços para o Sindicato dos Rodoviários de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro. As agressões verbais não partiam dos colegas de trabalho da funerária ou do sindicato, mas dos clientes. "Já abusaram de mim verbalmente e psicologicamente", disse.

Apesar de não sofrer tais agressões por parte da empresa, o apoio também não veio da maneira que precisava, quando necessário. "A empresa queria me trocar de local por conta das pessoas que me incomodavam por causa da minha orientação sexual."

Uma cultura em prol da inclusão de pessoas LGBTQI+ no ambiente de trabalho não existia em nenhuma das empresas pelas quais Ricardo passou. Para ele, seria importante que as organizações oferecessem, por exemplo, um grupo de apoio psicológico e um espaço para reclamações contra situações indevidas, sem represálias.

"Quando cheguei e falei para a minha patroa o que estava acontecendo, eu sofri a represália. Eu que tive que modificar o meu jeito e meu comportamento, e até minha forma de me vestir, para que não sofresse esse tipo de preconceito", relembrou.

Outro ponto importante, na opinião dele, é que deveria existir nas companhias uma quantidade mínima de LGBTQI+, para que aquela empresa consiga, de fato, entender as necessidades desse grupo. A partir daí, a organização terá condições de entender a questão do preconceito e se esforçar para oferecer um tratamento igualitário a todos.

Ricardo também mencionou que na maioria dos casos não há uma inclusão real das pessoas LGBTQI+ nas empresas. E que ainda existem poucas iniciativas que visam de fato a ajudar e contribuir com a causa.

+ Delegados falam das lutas LGBTQI+ nas carreiras da Segurança Pública

Startups estão mais alinhadas à pauta da inclusão

Tryanda Verenna, homem trans, compartilha uma opinião parecida. Para ele, as startups, normalmente comandadas por jovens, conseguem exercer a inclusão de forma mais efetiva do que nas companhias tradicionais. "Aqui no Brasil, as pessoas estão tão focadas em ganhar dinheiro e fazer um nome que não prestam atenção em algumas coisas."

O mesmo não costuma acontecer com empresas que vêm de fora do país.

"Em Londres, por exemplo, você pode andar como quiser que as pessoas não estão aí para você. Elas não querem saber quem você é e não têm tempo para te perceber. Talvez, por isso as coisas funcionem tão bem por lá. Os salários são bons, todos são tratados com respeito e as empresas têm políticas internas voltadas para o público LGBTQI+. Aqui no Brasil, quando as empresas vêm de fora, elas já vêm com essa cultura, o que é muito bom."

Tryanda acumula diversas experiências no mercado de trabalho, a maioria delas no setor do turismo. A vida profissional começou bem cedo, ao lado de sua mãe, que tinha uma loja na 25 de Março, em São Paulo. Mas os conflitos por conta de sua sexualidade o levou a buscar outras oportunidades de trabalho.

Passou por diferentes empresas, como Atento, Sodexo, CVC e MSC. Nessa última, teve a oportunidade de trabalhar em cruzeiros pela Europa e contou que lá a cor da pele e o gênero não importam. "Eles querem que você acorde cedo, vá trabalhar e seja um bom funcionário", conta.

A última experiência foi na Agaxtur, empresa diversa, mas não inclusiva. Quando começou na agência, em um shopping, Tryanda já estava no início de sua transição e a meta era conseguir o valor suficiente para a cirurgia de retirada dos seios.

Apesar dos demais colaboradores não estarem acostumados a trabalhar com pessoas LGBTQI+, aos poucos Tryanda foi conquistando seu espaço na equipe. Ele até conseguiu implementar algumas iniciativas para integrar mais todos os funcionários, como realizar uma vez por mês um café da tarde. "Até hoje temos uma relação boa."

+ #OrgulhoConecta: evento celebra a diversidade no mundo corporativo

Tryanda Verenna
Tryanda ajuda outros homens trans através de sua página no Instagram
(Foto: Arquivo Pessoal)

 

Pessoas trans ainda têm dificuldade em serem chamadas pelo pronome correto

Nessa época, Tryanda já tomava hormônios e tinha barba. O vendedor nunca ouviu comentários sobre seu corpo dos colegas de trabalho, mas sentia um olhar diferente do dono da empresa, muito presente nas lojas. 

Tryanda disse que chegou a entrar em contato com o RH da empresa para tentar sugerir uma cultura mais inclusiva, porém não houve interesse por parte da organização. Depois da cirurgia de retirada dos seios, Tryanda informou ao RH que gostaria de ser tratado por "ele" e não por "ela". Porém, o setor não tinha autonomia para trabalhar a questão sem autorização dos gestores.

Dessa  forma, o trabalho de comunicação e integração não foi feito. Antes da pandemia, a loja no shopping em que Tryanda trabalhava fechou e ele foi realocado para a Central, onde fazia atendimento das agências e não do público direto. Nesse momento, passou por mais uma situação desconfortável.

Tryanda não tem pretensão de mudar o nome de batismo, mas acabou se sentindo pressionado pelo RH da empresa a fazê-lo para não precisar corrigir todas as pessoas que atendia quanto ao pronome correto a ser usado para se referir a ele. Então, acabou fazendo a alteração e adotou o nome Theo no ambiente corporativo.

"Foi uma coisa que aconteceu, mas não de uma forma conversada. Aconteceu porque para eles, de repente, era mais cômodo. As pessoas na empresa também ficaram confusas, porque me viam com o crachá de Theo, mas eu falava que meu nome era Tryanda. A empresa não teve interesse em notificar os outros funcionários e explicar que adotaram o nome Theo como um nome fictício para os atendimentos", explicou.

Botão com link para newsletter

Hoje, Tryanda ajuda uma amiga que está montando uma loja franqueada da CVC. Além disso, é colunista no Blog Casa da Maite, co-fundadora da Transempregos, site que reúne oportunidades de emprego e capacitação para pessoas LGBTQI+.

"Projetos como a Transempregos fortalecem muito para que possamos ingressar em outras empresas e fazer parte de outro universo. A Maitê com a Transempregos não gera só um emprego para pessoas LGBTQI+, gera vida, oportunidade, crescimento, sonhos e realizações. Então, são por essas oportunidades geradas pela Transempregos e pela consultoria que ela [Maitê] presta às empresas sobre como nos tratar adequadamente, que muito homens e mulheres trans estão voltando a viver."

Tryanda também gerencia uma página no Instagram, que reúne informações importantes para a população Trans. Na @homemtransbr, as pessoas têm acesso a informações sobre saúde, capacitação, documentações, entre outras.