Inserção do jovem negro no mercado de trabalho ainda é um desafio?
Especialista comenta as dificuldades impostas pelo racismo estrutural
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Publicado em:15/07/2020 às 11:30
Atualizado em:15/07/2020 às 11:30
Em junho, ruas de vários países e cidades ecoaram vozes de cidadãos negros clamando por justiça. As manifestações foram motivadas pelo assassinato de George Floyd. Um homem preto, morto por um policial branco, na cidade Minneapolis, nos Estados Unidos.
No Brasil, os protestos também declaravam a indignação pelas mortes de cidadãos negros. Mas, além disso, escancarava nas ruas o racismo estrutural tão presente em diferentes segmentos da nossa sociedade como, por exemplo, no mercado de trabalho.
Dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em fevereiro, mostram que a taxa de desocupação da população autodeclarada negra, em 2019, ficou acima da média nacional de 11%, alcançando 26,1%.
Afinal, por que ainda há tanta disparidade salarial e desigualdade entre brancos e negros no mercado de trabalho?
Para Thais Bernardes, idealizadora do portal de jornalismo Notícia Preta, a dificuldade de inserção dos jovens negros no mercado de trabalho é intensificada por alguns fatores identificados no processo seletivo para ingresso em uma empresa:
"Eu sempre falo que tem um funil que exclui, muitas vezes, o jovem negro e periférico de ingressar, por exemplo, em uma grande redação de jornal. E quais são esses funis? É o processo seletivo, a começar pelo Inglês fluente. Quando você pega um jovem negro e periférico que conseguiu, muitas vezes, entrar na universidade pelo sistema de cotas, esse jovem muitas vezes não tem o Inglês fluente, assim como tem o estudante da Zona Sul, que já fez intercâmbio para fora do Brasil, que cresceu e estudou em uma escola bilíngue. Então, o processo seletivo já começa a ser prejudicial para esse negro periférico quando ele pede inglês fluente."
Thais destaca que, além do conhecimento de uma outra língua, um outro requisito que distancia esse jovem do mercado de trabalho é a exigência para que se resida próximo aos grandes centros urbanos. Dessa forma, um jovem negro e periférico que precisa pegar mais de uma condução passa para a empresa a impressão de que poderá se atrasar ou que a instituição gastará mais dinheiro com o transporte desse funcionário.
Outro ponto destacado por Thais é um processo muito comum nas seletivas para o preenchimento de uma vaga de trabalho: as dinâmicas de grupo. Para a jornalista, essa etapa pode ser extremamente cruel para o jovem negro que já cresce em um sistema de racismo estrutural e estruturante, mostrando que ele não é capaz, mesmo ele sabendo que é.
"Nesses processos de dinâmica de grupo você estimula, muitas vezes, a competição quando coloca um jovem preto, que já nasceu e cresce dentro um sistema de racismo estrutural e estruturante, dentro de uma sala com mais alguns estudantes brancos, vindos de grandes universidades e eles começam a conversar e dialogar. Todo esse processo da dinâmica, que parece muito natural para alguns, pode ser muito opressor para outros."
Além dos critérios já abordados, Thais ressalta que, apesar de não ser mais obrigatório, antigamente os currículos tinham a foto do candidato, o que já era outro início excludente.
"Quando viam a foto da pessoa negra, nem contratavam. Hoje em dia, não tem mais isso, mas você consegue identificar pelo nome e pelo endereço. Ou você vai contratar um 'Orleans e Bragança' ou um 'da Silva Pereira'", comenta.
Debate tardio, porém extremamente necessário na nossa sociedade
A diversidade racial no mercado de trabalho é um debate que vem ganhando cada vez mais espaço nos noticiários. No entanto, Thais questiona o porquê de somente agora a elite brasileira conseguir enxergar que existe racismo no Brasil.
"Por que a gente precisou esperar que um homem negro fosse morto por asfixia, nos Estados Unidos, por um policial branco para a gente criar campanhas e dar visibilidade à luta antirracista? A luta antirracista não começou ontem nem anteontem. Nós, negros, sempre falamos de racismo, isso não vem de agora", diz Thais ao ressaltar que não é preciso dar voz aos negros, pois eles têm voz, e o que ela precisa é ser ouvida.
"O que precisa ser dado ao povo negro é espaço e ouvido para que essas vozes sejam ecoadas. Isso que aconteceu com o George Floyd nos EUA, me traz essa questão: o porquê só agora?", completa.
Apesar de reconhecer o tardio debate sobre o racismo pelas elites, Thais acredita que todos esses movimentos são favoráveis, principalmente, para os projetos da causa negra. Para a CEO, esse é o momento de aproveitar a visibilidade para ganhar projeção e, com isso, esses projetos ganharem apoio e financiamento.
"Que essa luta não seja apenas uma luta de internet, de post no Instagram. Que realmente as pessoas entendem que a luta antirrascista é importante para que a gente tenha uma sociedade mais justa e igualitária. Se há racismo, não há democracia. Então, se a sua luta é por democracia ela também precisa ser antirracista, se não a nossa sociedade não vai evoluir."
Ela diz ter esperanças para as próximas gerações, já que, assim como a geração de seus pais viviam outra realidade em relação ao racismo, a geração do seu filho também viverá outra realidade em relação à dela.
No entanto, a comunicadora não acredita que a esperança de dias melhores e de uma sociedade igualitária virá através da "gourmetização" ou da transformação do antirracismo em uma moda:
"Quando você transforma tudo isso [a luta antirracista] em uma moda, você apaga os significados dessa luta. Então eu acredito que esse seja o caminho. Que esse seja um momento de aberturas de portas e que as pessoas brancas entendam que ser antirracista é abrir porta e dar oportunidade".
Número de jovens negros no ensino superior sobe, mas ainda é abaixo do esperado
O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, mostra que o número de jovens negros entre 18 e 24 anos no ensino superior aumentou de 50,5%(2016), para 55,6% (2018), porém esse número ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes brancos da mesma faixa etária no ensino superior.
Na população de jovens de 18 a 24 anos, frequentando ou não instituição de ensino, o percentual de brancos que frequentava ou já havia concluído o ensino superior (36,1%) era quase o dobro do de jovens pretos ou pardos (18,3%).
Thais diz ser preciso desenvolver políticas públicas que fomentem as oportunidades e os caminhos para jovens negros e periféricos ingressarem no mercado de trabalho.
"É preciso mudar esse lugar onde o negro está no imaginário social para que a gente consiga avançar. E isso inclui o mercado de trabalho. A gente precisa mudar isso para ter não apenas a representatividade, mas sim a equidade. Afinal, nós somos 54% da população, então, a gente precisa estar em, pelo menos, 50% de todos os espaços", explica.
Para a idealizadora do Notícia Preta, um dos passos que as empresas podem ter para abrir as portas, efetivamente, à população negra e periférica é fazer um sistema de cotas dentro do processo seletivo. E nesse sistema de cotas não exigir, por exemplo, o Inglês fluente.
Além disso, a oferta de cursos de capacitação para esses jovens atuantes nas empresas pode ser o caminho para que eles tenham um bom crescimento dentro da organização.
As políticas afirmativas que permitiram a inserção de mais jovens negros e periféricos nas universidades é um exemplo dado por Thais quando questionada sobre as mudanças que já podem ser notadas na empregabilidade do jovem negro.
No entanto, só a garantia do acesso ao ensino superior não é suficiente para que esses jovens alcancem sucesso na área profissional.
"A gente não pode esquecer que política de ação afirmativa por si só, não muda o mercado de trabalho, é todo um ciclo. Precisa das medidas afirmativas para esse jovem cursar a universidade? Sim. Mas, além disso, o mercado tem que estar preparado e disposto para receber esse jovem enquanto funcionário da sua empresa. E, para isso, o mercado precisa entender a importância da diversidade", finaliza Thais.
Por Cinthia Guedes - cinthia.guedes@folhadirigida.com.br