Cotas para negros em concursos: o que justifica essa política?

Professor Vinicius Mota fala sobre a política de cotas e os impactos no serviço público.

Colunistas
Autor:Vinicius Mota
Publicado em:22/11/2023 às 17:15
Atualizado em:22/11/2023 às 17:31

A adoção de políticas de ação afirmativa destinadas a conferir pontuais vantagens à população negra no Brasil foi apresentada ao debate público como uma questão polêmica.


Há mais de duas décadas, os estudiosos têm comprovado que houve uma escolha, efetuada pelos meios de comunicação, de retratar as políticas de cunha racial como uma “polêmica”.


Isso serviu ao propósito de reduzir a compreensão do assunto a uma questão de cunho pessoal (sou contra ou a favor), rejeitando uma outra forma de abordagem, que poderia, por exemplo, explicitar os fundamentos dessa ação afirmativa.


Observe, por exemplo, que as cotas para pessoas com deficiência, seja no concurso público, seja no mercado de trabalho, jamais foram retratadas como polêmicas.


Ou então, as medidas de proteção especificamente voltadas às mulheres, como a Lei Maria da Penha, por sua vez são apresentadas como necessárias para fazer frente à violência contra a mulher (e não como uma polêmica).


Por conta disso, a nossa proposta nesse texto é tratar das cotas raciais para concurso público por outro viés, qual seja: existe algum fundamento ético-moral ou jurídico para essa política?



A questão é, na essência: como pode o Estado Democrático de Direito adotar uma medida que busca conferir vantagens a um

determinado grupo racial?


E aqui está o ponto: o Estado brasileiro sempre adotou medidas legislativas baseadas em raça.


Na década de 1830, temos as primeiras legislações que vedavam o acesso ao ensino de pessoas que “não fossem livres”. Assim, considerando que pessoas brancas não foram escravizadas no Brasil, o acesso delas à instrução era irrestrito.


Somente negros e indígenas foram afetados com a impossibilidade de acesso à educação (política de cunho racial, portanto).


Em 1890, quando então já nos organizávamos como República, em cuja Constituição vigorava o princípio da igualdade jurídica entre os cidadãos, surgiu o Decreto 528/1890, que estabeleceu um conjunto de políticas públicas destinadas a dar emprego, acesso à terra, moradia subsidiada, exclusivamente, a europeus (o decreto explicitamente afastava africanos e asiáticos de seus benefícios).


Mais uma medida adotada pelo Estado com cunho racial, conferindo vantagens, exclusivamente, às pessoas brancas. Esses são dois exemplos de como a sociedade se serviu das instituições estatais para criar uma legislação que favoreceu o acesso à educação, ao trabalho, terra e moradia a um

determinado grupo.


É por conta disso que existem políticas públicas de ação afirmativa voltadas especificamente para pessoas negras, para mitigar os efeitos persistentes da legislação que estruturou uma sociedade desigual em termos raciais.


E aqui é preciso dar um passo além. A despeito da legislação discriminatória já ter sido revogada, as desigualdades persistem e o racismo presente nas interações do nosso cotidiano continuam a reproduzir tratamento discriminatório sistemático direcionado a pessoas negras.


Em termos jurídicos, a ação afirmativa se destina a conferir uma pontual vantagem a um grupo social historicamente marginalizado no que tange à possibilidade de usufruto de direitos em uma sociedade.


Se a sociedade brasileira se estruturou retirando das pessoas negras a condição de sujeito de direito, de modo que elas não ficavam com o resultado de seu trabalho, bem como não deixavam herança aos seus descendentes.


Se o racismo implica em discriminação no acesso ao mercado de trabalho, em pagamento de salário menores para as mesmas funções, é certo que as pessoas negras têm menores condições materiais de custear educação de qualidade a seus filhos.


Se a desigualdade resulta no fato de pessoas negras terem pior acesso à moradia, de modo a residirem mais distantes dos postos de trabalho, com menos tempo para lazer e estudo.


Se a discriminação faz com quem o nível de desemprego e subocupação seja maior entre pessoas negras. Evidentemente, as pessoas negras enfrentam circunstâncias ainda mais adversas para poderem se dedicar aos estudos para concurso.


Já foi demonstrado que o percentual de pessoas que puderam se dedicar exclusivamente ao estudo para magistratura, por contar com alguém encarregado de pagar suas contas, é maior entre pessoas brancas.


Por isso, as cotas para concurso público. Em 2014, ano em que surgiu a lei de cotas para concurso público, os negros representavam 29% dos integrantes do serviço público. Hoje, são 42%.


Em resumo, as pessoas serão contrárias ou favoráveis às cotas para negros em concurso público, porém saber que o Estado brasileiro adotou políticas racializadas para conferir vantagens imerecidas a pessoas brancas, inclusive após o período escravocrata, não é uma questão polêmica.


É um fato, o qual justifica a adoção de medidas reparatórias por intermédio de suas instituições.


Vinicius Mota

Advogado. Prof. de Trabalho, Processo do Trabalho, Seguridade Social e Direito Antidiscriminatório. Mestre em Direitos Humanos pela USP. Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade Damásio. Professor do Qconcursos.