Pandemia expõe vulnerabilidades do trabalho doméstico
Em meio à pandemia, empregadas domésticas que trabalham na informalidade se viram sem dinheiro e sem trabalho.
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Publicado em:07/09/2020 às 09:00
Atualizado em:07/09/2020 às 09:00
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, em 2019, o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,3 milhões de pessoas. Para se ter uma ideia, é o equivalente a quase duas vezes a população do Uruguai.
E esse grupo tão grande é composto, em sua maioria, por mulheres (93%) - sendo a maior categoria profissional feminina do país. Para elas, o trabalho doméstico é a principal fonte de renda e, com a pandemia, isso foi afetado.
No caso das trabalhadoras informais - principalmente as diaristas - que não possuem garantias de uma pessoa registrada, o isolamento resultou em perda parcial ou total de ganhos. Por outro lado, elas também estão entre os profissionais mais expostos ao vírus.
Em 17 de março, morreu a primeira vítima da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro: Dona Cleonice, de 63 anos, era empregada doméstica e contraiu a doença na casa da patroa, no Leblon. Por morar no sul fluminense, ela percorria 120km semanalmente para ir trabalhar.
Essas profissionais são, majoritariamente, pobres e possuem baixa escolaridade. Assim como era o caso de Dona Cleonice, elas também moram em locais afastados e precisam se deslocar em transportes públicos para chegar ao trabalho.
No início da pandemia, para resguardar a saúde delas sem prejudicar a sobrevivência, algumas associações pediram para que os patrões dispensassem suas empregadas sem cortar os pagamentos.
Porém, em abril, segundo o Instituto Locomotiva, 39% dos empregadores abriram mão dos serviços dessas profissionais sem manter o pagamento. E, por mais que pareça que essa atitude tenha a ver apenas com falta de dinheiro, esse percentual foi maior entre os mais ricos.
Entre os empregadores pertencentes às classes A e B, 45% deixaram de pagar suas empregadas. Sem dinheiro em casa e em meio a uma pandemia, a vida dessas mulheres ficou ainda mais complicada.
Para as empregadas domésticas que não estavam recebendo ou não tinham carteira assinada, ficar em casa em quarentena significava ficar sem dinheiro para necessidades básicas, o que tornou a realidade da pandemia ainda mais desanimadora.
“O impacto da pandemia foi gigante, pois foi preciso que a gente parasse de trabalhar para que a gente também cuidasse da nossa saúde. Porém, não tínhamos nenhum dinheiro, poucos clientes continuaram pagando as faxinas e o auxílio emergencial saiu nos últimos ciclos”, conta Renata Aline, gestora do coletivo Tereza de Benguela.
Em BH, coletivo busca ajudar trabalhadoras
"O Tereza de Benguela surgiu da denúncia de várias diaristas que sofriam exploração", explica Renata. Ela conta que houve a decisão das trabalhadoras por se reunir para criar regras e estabelecer o que era faxina, com o objetivo de serem tratadas como prestadoras de serviços.
O coletivo fica em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, e tem ajudado as profissionais da área, principalmente durante a pandemia. A gestora comenta que as mulheres do projeto atuam como diaristas, por isso não têm acesso a muitos dos direitos que outros trabalhadores têm.
"A gente não possui quase nenhum direito, não temos assistência do INSS, e nem garantia de receber qualquer valor parada em casa".
Além de ser predominantemente feminino, o trabalho doméstico também tem fortes questões raciais. Renata explica que esse tipo de serviço é uma herança escravagista e que as mulheres negras constituem a maior parcela da categoria.
Essa é uma das principais formas de inserção no trabalho para mulheres pretas e pardas. Segundo a gestora do coletivo, muitas dessas mulheres já sofrem para ter acesso a direitos básicos - como educação, moradia e saúde - e, além disso, precisam enfrentar o racismo que ainda é fortemente presente.
Com a flexibilização das regras de isolamento e retomada dos trabalhos, Renata pede para que os patrões tomem alguns cuidados para não por em risco a vida dessas profissionais, como:
Pagar meios alternativos de transporte, como Uber, para evitar a locomoção das diaristas em transportes públicos superlotados;
Usar máscaras;
Disponibilizar álcool para higienização;
Manter o distanciamento social durante a faxina;
E, se possível, realizar o pagamento por transferência bancária.
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É possível garantir direitos trabalhistas às domésticas?
No Brasil, a Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT) foi assinada durante o período do Estado Novo, em 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas. A CLT é o que garante ao trabalhador alguns direitos, como 13° salário e férias remuneradas.
No entanto, mesmo com o grande número de profissionais, o trabalho doméstico só chegou a ser formalizado 72 anos depois, em 2015, com a chamada PEC das Domésticas. Até então, essas profissionais não tinham acesso aos direitos que outros empregados têm.
Para que esses direitos sejam garantidos, é preciso formalizar a contratação. Segundo Mário Avelino, presidente do Instituto Doméstica Legal, contratar uma doméstica dentro da legislação trabalhista não é complicado. Ele frisa que existem algumas obrigações trabalhistas que o empregador tem que ter.
Essas obrigações vão desde a admissão (com contrato de trabalho e documentos admissionais) até a pós-demissão (com seguro-desemprego). Durante o tempo de serviço, há responsabilidades com pagamentos e licenças.
Para isso, existe um aplicativo do Governo Federal chamado eSocial Doméstico, que permite ao empregador fechar folhas de pagamento, gerar guias e comprovantes de pagamento e mais. Tudo isso utilizando apenas o celular.
Além disso, Avelino conta que o Instituto Doméstico Legal tem apoio do portal Doméstica Legal, que é uma empresa especializada em fazer folhas de pagamento e pode ser contratada pelos empregadores domésticos que querem facilitar o processo.
Segundo o presidente, o principal trabalho da instituição é "a melhoria da lei para empregados e empregadores, ou seja, o nosso foco é o emprego doméstico". Ele conta que, em 16 anos de atuação, o instituto conseguiu alguns avanços.
"Nesses dezesseis anos de luta, já conquistamos muitas melhorias - a própria PEC das domésticas - nós fomos 'um grande ator' lá [na tramitação do projeto]. Foi o instituto que conseguiu reduzir o INSS do empregador doméstico que era 12%, foi para 8%. Foi o instituto que conseguiu, por exemplo, que as diaristas fossem classificadas como microempreendedores individuais e, como tal, elas pagam hoje uma alíquota mínima de 5% para estarem asseguradas pelo INSS, e outras conquistas", conta.
Solidariedade no trabalho doméstico
O Instituto e o portal Doméstica Legal lançaram uma campanha chamada 'solidariedade legal com a sua ex-empregada doméstica ou com sua ex-diarista'. Mário pontua que muitas trabalhadoras perderam o emprego durante a pandemia.
"No segundo trimestre de 2020, emprego doméstico perdeu mais de 1,3 milhão de vagas. Então, tem muitas trabalhadoras domésticas passando por necessidades e até fome, e esses ex-empregadores ou ex-contratantes podem ajudá-las", explica.
Além disso, também houve o lançamento de uma cartilha gratuita com cuidados no retorno do emprego doméstico durante a pandemia. Tanto o documento, quanto a campanha estão disponíveis no site do Instituto Doméstica Legal.