Como empresas e profissionais podem furar o bloqueio do racismo?

Será que apenas ampliar a contratação de negros e pardos já resolve o problema? Especialistas falam sobre ações e desafios do mercado sobre o tema.

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Publicado em:19/11/2020 às 18:00
Atualizado em:19/11/2020 às 18:00

Como empresas e profissionais podem ser antirracistas? Que tipo de ações devem ser tomadas no ambiente profissional para promover maior inclusão de pessoas negras? Contratar pretos e pardos, implementar políticas de cotas é o suficiente? [tag_teads]

Este ano de 2020 foi marcado por uma série de acontecimentos importantes e uma das pautas que mais movimentou as discussões foi o racismo estrutural. Por isso questionamentos como os citados acima foram amplificados, principalmente agora, no Mês da Consciência Negra.

Empresas como Magazine Luiza e Bayer, por exemplo, se destacaram ao promover seleções voltadas exclusivamente para esse público. Atitude que influenciou diversas outras companhias e até empresas menores.

Mas ainda não é o suficiente! 

negros no marcado de trabalho
Como empresas podem ser antirracistas?
(Foto: Reprodução)

 

E isso não tem nada a ver com insatisfação com o que já foi feito. É que ao discutir antirracismo, se a intenção realmente for superar a barreira da desigualdade racial, é necessário pensar também no longo prazo. 

Mesmo contratando mais pessoas negras, quais tipos de cargos elas estão ocupando? Como é o ambiente profissional para elas, como são acolhidas? Elas possuem possibilidade de ascensão tanto quanto os brancos?

Talvez, esses questionamentos sejam ainda mais importantes. E para responder a eles, Folha+ conversou com alguns especialistas sobre racismo e recrutamento para entender o que empresas e profissionais podem fazer a respeito.

Inclusão vai muito além do processo seletivo com vagas para negros

Em entrevista à Folha+, o colunista e ativista Levi Kaique Ferreira lembra que a inclusão de mais pessoas negras no mercado passa por diversas fases, que vão muito além de um processo seletivo. Levi Kaique

“Primeiro de tudo, é necessário entender que, antes mesmo da seleção, da entrevista, de chegar até a oportunidade de emprego, existem dificuldades que pessoas negras enfrentam que podem até mesmo impossibilitá-las de fazer parte do recrutamento.”

Ele se refere aos diversos fatores sociais que distanciam essa população das oportunidades, como acessibilidade, barreiras de acesso à educação, preconceitos sofridos dentro das próprias empresas, possibilidades de ascensão limitadas, etc.

enlightened Segundo dados do IBGE, negros enfrentam mais dificuldade de encontrar um emprego se comparados a trabalhadores brancos. Além disso, pretos e pardos são maioria em setores com remuneração mais baixa.

“Um processo de recrutamento que visa integrar pessoas negras nas empresas precisa considerar essas variáveis.”

Por isso, empresas que desejam, genuinamente, integrar mais pessoas negras em seus quadros precisam “começar do começo”. É que não basta abrir as vagas, se não há um entendimento de como elas vão chegar ao público desejado.

Um exemplo: não é raro que um jovem negro da periferia desista ou seja impedido de concorrer a uma vaga só pela distância para chegar até o local. Isso tendo em vista que a maioria da população preta é periférica e mora distante dos grandes centros.

Quantas vezes não se vê uma vaga de emprego ou estágio que tem como requisito morar até determinada distância?  Mas a maior parte dos escritórios estão nos centros, cenário que gera mais uma barreira para essas pessoas. 

“Às vezes, promover processos virtuais, mover-se para as proximidades das comunidades ou buscar iniciativas de RH que já trabalham com recrutamento de pessoas pretas podem ser grandes passos”, sugere Levi. 

Denise Asnis é cofundadora de um aplicativo que auxilia na ampliação de processos de recrutamento inclusivos por meio da autodeclaração, por exemplo. Os candidatos autodeclaram sua raça e gênero, o que torna possível realizar processos seletivos focados em negros, se for o caso.

“Este ano, um cliente TAQE fez um processo seletivo apenas para mulheres negras. Passados dez dias, cerca de 120 colaboradoras neste perfil estavam iniciando o trabalho. Além disso, alguns dos nossos clientes gostam de fazer processos às cegas até chegar à fase final de entrevistas”, conta Denise.

De acordo com ela, algumas ferramentas e filtros como esses têm feito a empresa perceber que o percentual de negros no processo final é maior, assim como a contratação de diversas graduações e instituições de ensino que antes não eram frequentes.

Portanto, a atitude antirracista da empresa que deseja equalizar as oportunidades já começa a partir da estratégia de recrutamento. Ou seja, abrir leques que oportunizem a chegada dessas oportunidades à população negra.

“Além disso, é necessário pensar em processos mais inclusivos com a presença de outras pessoas pretas no processo de seleção e um olhar atento a esses aspectos até então ignorados.”

Especialista sugere que empresas façam autoanálise da cultura interna

Denise Asnis, como co-fundadora de uma plataforma de recrutamento que tem preocupação em equiparar vieses de raça e gênero na hora da contratação, sugere que as empresas iniciem seus processos de inclusão com uma autoanálise. 

Ou seja, entender os motivos que levaram a empresa ao quadro em que ela se encontra. A partir dos resultados obtidos nesta análise, ela pode criar ações mais efetivas e de acordo com a cultura e interesse genuíno. 

enlightened Segundo dados do IBGE, negros recebem 31% menos e 14,7% estava desocupado em 2018, contra 10% dos brancos.

Assim como Levi, Denise entende que a inclusão vai muito além da abertura das vagas apenas. Partindo da perspectiva da instituição, é necessário um verdadeiro estudo da cultura que se tem e, se necessário, essa cultura talvez precise ser retrabalhada.

“Após um bom diagnóstico vem a fase de despertar a importância da liderança (da empresa) para o tema. Levá-los a refletir sobre diversidade e trabalhar a cultura organizacional.”

E depois da contratação? O que vem?

Uma empresa que possui um quadro de funcionários diverso não tem todos os desafios superados ainda. O racismo não deixa de existir para a pessoa negra contratada só porque ela foi contratada.

Por isso também é necessário discutir quais tipos de políticas internas as empresas devem adotar nesse sentido. E isso não é sobre fatores pessoais, mas sim sobre fatores do próprio ambiente que podem interferir até no desempenho do profissional e nas chances de ascensão.

Um ponto importante destacado por Levi: o ambiente corporativo precisa garantir à pessoa negra um local de trabalho saudável e seguro, assim como é para os brancos. Ou seja, precisa acolher suas demandas específicas e dar voz a elas. 

Sugestões do Levi:

  • uma linha de denúncias para casos de racismo 
  • programas de conscientização sobre o tema, com palestras e dinâmicas internas que tragam informação e trabalhem esses assuntos de forma adequada
  • promover capacitação e caminhos para que pessoas pretas possam chegar a cargos de gerência e liderança, etc.

“Sempre buscando trazer para a empresa e seus funcionários a segurança de que a cor da pele não será fator negativo para tal. Acredito que pensar a integração de políticas internas que visam ampliar o espaço de pessoas negras e cada vez mais incluí-las nas tomadas de decisões é extremamente importante.”

O que + você precisa saber:

Empresas precisam vestir a camisa do antirracismo

“Ainda é cedo para afirmar resultados duradouros. Iniciativas como as da Magalu e Bayer parecem ter estimulado outras empresas a fazerem o mesmo e os recentes acontecimentos nos EUA e no mundo têm feito muitas empresas passarem a se atentar a essas questões, mas ainda temos um longo caminho pela frente.”

Como demonstra Levi Kaique, o mundo corporativo ainda precisa ir mais além para realmente ver resultados duradouros e efetivos contra o racismo. As empresas precisam verdadeiramente vestir a camisa antirracista. 

Ou seja, buscar coerência entre crenças, valores, práticas da liderança e processos de gestão de pessoas. Fora isso, as polêmicas envolvendo as poucas ações afirmativas que existem nos dão uma boa dica de que ainda não atingimos o mundo ideal. 

“A resistência que essas iniciativas geraram (da Magalu e da Bayer) pode ser uma dificuldade que as empresas precisam se comprometer a superar. O Estatuto da Igualdade Racial já prevê esse tipo de iniciativa desde 2010 e só agora temos grandes empresas se movimentando para o cumprimento da lei, então estamos claramente engatinhando nesse assunto”, diz Levi.

O desafio é tornar essas movimentações cada vez mais comuns e duradouras para que os resultados sejam efetivos no número de pessoas negras integradas ao mercado de trabalho. “Tal qual os resultados que temos colhido das políticas de cotas em universidades”, lembra Levi. 

A especialista em recrutamento sugere que as empresas, após avaliarem e trabalharem melhor suas culturas organizacionais, coloquem em prática outras ações de incentivo, como, por exemplo:

  • Se tornar empresa signatária de pactos raciais e impulsionadora de projetos;
  • Contribuir com relatórios de iniciativas empresariais pela igualdade racial, que inclusive abre novos canais de atração de candidatos;
  • Rever os processos seletivos;
  • Tornar a comunicação mais inclusiva e fazendo-a chegar aos lugares onde serão mais efetivas;
  • E utilizar tecnologia desde o recrutamento, o que auxilia a tornar o processo seletivo mais inclusivo e com força para eliminar vieses do passado.

 

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